Artigo: PMI e insegurança jurídica

O Estado do Rio de Janeiro realizou a licitação da PPP do Maracanã recentemente. Houve dois licitantes e o consórcio liderado pela Odebrecht ficou em primeiro lugar. Até aqui, tudo bem.

Nas licitações de contratos de PPP normalmente há poucos concorrentes, a despeito de ser do poder público o dever de se esforçar para ampliar o número de interessados nos projetos e, consequentemente, o número de licitantes.

O que chamou a atenção na PPP do Maracanã, entretanto, não foi o resultado da licitação, mas sim o intenso engajamento administrativo e judicial do Ministério Público Estadual e Federal na tentativa de suspender a licitação. O cenário de insegurança jurídica que conformou a licitação foi relatado pela imprensa.

O lance decisivo parecia ter sido dado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que, horas antes do prazo para a apresentação das propostas pelas empresas interessadas na licitação, cassou a liminar da primeira instância que havia suspendido a concorrência, permitindo a continuidade do processo.

Contudo, um novo lance foi dado no dia 10 de maio: uma nova liminar foi concedida pela Justiça Estadual do Rio de Janeiro, suspendendo a continuidade do processo licitatório. A nova ação do Ministério Público Estadual, por intermédio da liminar (que também foi posteriormente cassada), impediu momentaneamente a adjudicação do contrato à licitante declarada vencedora.

De acordo com a decisão judicial, a ilegalidade motivadora da liminar foi o fato de que uma das empresas integrantes do consórcio vencedor (IMX) elaborou o estudo de viabilidade do projeto de PPP, o que desrespeitaria o “princípio da isonomia entre os licitantes”. Essa argumentação parece frágil, pois a legislação brasileira permite que a empresa autora dos estudos participe de licitação de contratos de concessão[1].

Houve, entretanto, outros argumentos, que impactam o tema da governança dos Procedimentos de Manifestação de Interesse (PMI). Um dos principais argumentos do Ministério Público na primeira tentativa de suspender a licitação foi o fato de que os estudos de viabilidade que subsidiaram o edital não estavam disponíveis em formato digital em página eletrônica oficial do Estado do Rio de Janeiro. Ou seja, para o Ministério Público, faltou transparência no processo de tomada de decisão do Estado sobre o projeto[2].

O uso do PMI na PPP do Maracanã deixa algumas dúvidas para o poder público e para a iniciativa privada: o uso do PMI está em risco? Os recentes acontecimentos reduzem o apetite da iniciativa privada para participar de PMIs nos próximos anos? Será que o poder público continuará recorrendo com a mesma intensidade ao PMI para estruturar projetos de PPP?

A judicialização da PPP do Maracanã serve como alerta para que o mercado brasileiro de PPP analise criticamente o modo como os PMIs vêm sendo utilizados nos últimos anos[3]. Como será apresentado a seguir, há outros casos em que órgãos de controle externo apresentaram críticas ao modo como o PMI foi utilizado.

 

Problemas

O PMI vem sendo largamente utilizado nos últimos anos como estratégia prioritária de obtenção dos estudos de viabilidade de projetos de PPP nos Estados, nos Municípios e, mais recentemente, na União.

Pode-se dizer que o PMI institucionaliza o relacionamento pré-licitação entre o poder concedente e o mercado interessado na futura PPP. Trata-se de um instrumento importante, porque (i) permite que o poder público desenvolva o mercado interessado no projeto, de modo que poderá ampliar o grau de competitividade da futura licitação a depender do modo como o PMI for desenhado e gerido; e porque (ii) é salutar que o poder público entre em contato com a visão da iniciativa privada sobre o projeto durante a fase de desenvolvimento dos estudos de viabilidade.

Entretanto, PMIs não substituem a capacidade institucional do poder público para avaliar criticamente os estudos de viabilidade recebidos. Adicionalmente, o PMI não é uma estratégia que necessariamente torna mais ágil o processo de tomada de decisão do poder público sobre um potencial projeto de PPP. Se o poder público não estiver preparado, poderá receber os estudos de viabilidade e não ter condições de tomar uma decisão sobre o projeto de PPP.

O uso do PMI pode gerar uma situação de insegurança jurídica não apenas em função da reação do Ministério Público ao projeto de PPP do Maracanã. Em Santa Catarina, o Tribunal de Contas decidiu o seguinte: “Resta demonstrado que as condições e critérios firmados em um procedimento de manifestação de interesse, seja pela exiguidade de prazo para a apresentação de proposta técnica e financeira, pelo preço atribuído aos projetos, estudos, levantamentos ou investigações, ou pelos parâmetros e meios para a escolha da melhor proposta técnica e financeira, podem sim prejudicar eventual contratação para a exploração dos serviços de esgotamento sanitário das áreas urbanas do Distrito de Palhoça, razão pela qual se entende pelo cabimento da representação”.

Segundo o Tribunal de Contas de Santa Catarina, os problemas do referido PMI foram, entre outros, os seguintes:

  • ausência de critérios objetivos para seleção dos estudos;
  • prazo exíguo para elaboração dos trabalhos;
  • ausência de adequada publicidade.

 

Em São Paulo, o Tribunal de Contas do Estado (TCE/SP) já decidiu pela exclusão do direito de ressarcimento ao autor dos estudos de viabilidade que subsidiaram o projeto de PPP para a gestão do trânsito da Prefeitura de Cotia. O ressarcimento de R$ 700.000,00 estava previsto em cláusula da minuta do contrato de concessão administrativa e o TCE/SP decidiu pela exclusão desta regra contratual, assim como pela anulação da licitação (a decisão é de 2012).

O principal motivo para a exclusão do direito ao ressarcimento decorreu da análise do TCE/SP de que não foi “apresentado qualquer documento da mencionada Audiência Pública, de onde se pudesse extrair os fundamentos dessa remuneração pela elaboração do mencionado plano de negócios para este empreendimento”.

Por fim, o Ministério Público do Estado de São Paulo instaurou um inquérito para analisar o PMI realizado pela Prefeitura de Ribeirão Preto para obter os estudos de viabilidade de projeto de PPP para a coleta e disposição final de resíduos sólidos.

Esses fatos revelam o seguinte: o PMI, uma ferramenta que vem sendo frequentemente utilizada pelo poder público para obter os estudos de viabilidade de projeto de PPPs, pode se transformar de facilitador em problema para o adequado processo de deliberação do poder público sobre um projeto de interesse público intermediado por um contrato de concessão.

 

Novas práticas

O PMI tem ótimos pontos: oxigena a deliberação pública, permite o engajamento antecipado dos potenciais licitantes, desenvolve o mercado brasileiro de PPP, institucionaliza o diálogo entre mercado e poder público. Entretanto, o modo como alguns PMIs são conduzidos no Brasil acabam por anular as potencialidades do instrumento.

Alguns Estados e Municípios, por exemplo, estão criando verdadeiras barreiras de entrada às empresas interessadas em participar de PMIs. Passa-se a exigir a demonstração de que a empresa já participou de outros PMIs, passa-se a exigir que a empresa já tenha sido acionista de uma sociedade de propósito específico (SPE) para a execução de PPPs e, por fim, a medida mais problemática, estabelece-se no PMI que apenas uma empresa será selecionada para realizar os estudos de viabilidade.

Para dar exemplos, recentes PMIs do Rio Grande do Norte, do Espírito Santo e da Prefeitura do Rio de Janeiro foram deliberadamente desenhados de modo a apenas selecionar uma empresa, que interagirá de modo exclusivo com o poder público[4].

A decisão de selecionar apenas uma empresa não parece fazer sentido do ponto de vista dos fins do PMI. Se o poder público tiver apenas um interlocutor, não haverá espaço para provocar alguma tensão competitiva durante o PMI. Para o poder público que pretende se empoderar durante o PMI e desenvolver-se institucionalmente, gerir a tensão competitiva entre as empresas cadastradas é uma opção que não pode ser desperdiçada.

Além disso, estamos falando de um procedimento em que todos os riscos são privados. O risco de investir nos estudos de viabilidade, engajar recursos humanos das empresas nos estudos, o risco de não ter os estudos aceitos, o risco de o projeto ser arquivado, assim como o risco de que a licitação não ocorra ou seja suspensa.

Por que, neste contexto, selecionar apenas uma empresa? Por que estabelecer um filtro rígido para interagir com empresas antes da licitação? Se apenas uma empresa for cadastrada, o poder público perde a possibilidade de ter diferentes visões sobre o projeto.

Cabe aqui elogiar o Estado de São Paulo, cuja prática permite a ampliação da base de empresas interessadas em participar de seus PMIs.

Cada micro decisão ao se desenhar um PMI gera impactos no processo decisório do poder público, na qualidade projeto de PPP e no grau de competição da licitação. O desenho e a governança do PMI não podem ser tratados de modo trivial, sob pena de que a própria finalidade do instrumento não seja alcançada.

 

(Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do PPP Brasil. O portal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações).


[1] Entretanto, essa regra não é aplicada em todos os casos e não foi respeitada no último PMI realizado pela Secretaria de Aviação Civil.

[2] A mesma preocupação foi apresentada em comentário da consulta pública do projeto de PPP da Bahia referente ao Sistema Metroviário de Salvador e Lauro de Freitas. NOTA EXPLICATIVA nº 031.

[3] Além da judicialização da PPP do Maracanã, no recente PMI da União para a realização dos estudos de viabilidade dos aeroportos do Galeão e de Confins, uma das empresas cadastradas (IQS Engenharia) propôs uma ação judicial para contestar a seleção dos estudos de viabilidade apresentados pela EBP (Estruturadora Brasileira de Projetos). Fonte: O Globo, 29 de maio de 2013, “Estudo vencedor propõe até 4 pistas de pouso”, de autoria de Danielle Nogueira.

[4] A exclusividade não é absoluta porque, eventualmente, o poder público poderá contratar consultores externos durante ou ao fim do processo.

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