Artigo: Estudo jurídico sobre o Decreto nº 61.371/2015 (o “decreto dos PMIs”) do Estado de São Paulo

André Castro Carvalho

Murilo Ruiz Ferro

Introdução – 1. Fim da distinção entre MIP e PMI e surgimento do “PMI espontâneo” e “PMI provocado” – 2. Seleção de proponentes (exclusividade) ou seleção de projetos (“swiss challenge”) – 3. O “silêncio letal” da Administração Pública – 4. O problema do uso dos estudos face à Lei de Licitações e o RDC – 5. Experiência ou expertise: qual seria a melhor opção? – 6. Especialistas sem “aparente” interesse direto ou indireto com os estudos – Últimas Considerações.

Introdução

Na linha da reformulação feita pela União com o Decreto federal nº 8.428/2015, a fim de estimular o setor privado a contribuir para o desenvolvimento de estudos em projetos de infraestrutura e serviços públicos, o Estado de São Paulo publicou, em 22 de julho de 2015, o Decreto nº 61.371/2015, o qual “[i]nstitui procedimento alusivo à apresentação, à análise e ao aproveitamento de estudos, encaminhados pela iniciativa privada ou por órgão ou entidade da Administração Pública estadual, e dá providências correlatas”, os denominados (e já conhecidos no mercado) PMIs, abreviação da expressão Procedimento de Manifestação de Interesse – termo e sigla, aliás, que são abandonadas no Decreto, mas que serão mantidos ao longo do texto para facilitar a exposição.

O Decreto nº 61.371/2015 representa um dos atos normativos mais modernos e completos, juntamente com o Decreto federal, no que concerne à regulação normativa da participação da iniciativa privada nesse processo. Muito provavelmente servirá de parâmetro para outros Estados e Municípios elaborarem os seus respectivos Decretos quando da regulamentação dos PMIs nas suas respectivas esferas de competência.

A grande inovação, sem dúvidas, ficou por conta da Plataforma Digital criada para essa finalidade, a qual receberá, de maneira concentrada e informatizada, as propostas formuladas por parte do mercado, o que constitui um excelente avanço em termos de transparência e gestão pública. Com isso, vislumbra-se que será ampliado o espectro de participação de interessados nesses procedimentos, o que vai exatamente ao encontro do princípio da publicidade e transparência dentro da Administração Pública.

Nada obstante, alguns pontos necessitam de maior observação, e, por isso, serão objetos dessa breve análise, a qual se presta a colocar relevo em algumas discussões que são comumente observadas na prática dos PMIs em diversos entes federativos, e que podem vir a ser suscitadas sob a vigência do novo Decreto. Em suma, são apenas discussões com cunho contributivo e que – a despeito do elemento crítico que eventualmente possam carregar – em nada reduzem a importância ou maculam o novel instrumento normativo, este que seguramente já representa um importante avanço nessa seara.

Igualmente, cumpre destacar que se trata de uma análise preliminar, tendo em vista que que o Decreto foi assinado pelo Governador do Estado em 21 de julho de 2015, data na qual os autores desse estudo tiveram o primeiro contato com o texto normativo ora em comento.

1) Fim da distinção entre MIP e PMI e surgimento do “PMI espontâneo” e “PMI provocado”

Pelo Decreto, pode-se dizer que os PMIs contemplam tanto uma postura proativa por parte da iniciativa privada – situação em que o procedimento pode ser iniciado espontaneamente pelo particular, tendo por finalidade ordenar a apresentação, análise e aproveitamento de estudos (para alguns, vale dizer, tal prática é justificada até pelo próprio direito de petição, previsto constitucionalmente) –, quanto reativa – nas situações cujo início é provocado por um chamamento público, isto é, a publicação de edital de chamamento para recebimento de solicitações de autorização por parte de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado interessadas. Esta última hipótese comumente ocorre quando a ideia preliminar de um projeto governamental já está em um bom nível de maturação dentro da Administração Pública. Chamaremos, respectivamente, como PMI espontânea e PMI provocada – embora tais expressões devam ser manejadas para fins meramente didáticos, porquanto, repise-se, não são utilizadas no Decreto.

Com isso, coloca-se fim, no Estado de São Paulo, à distinção que alguns decretos de outros entes da federação veiculam com relação às figuras do PMI e da MIP (Manifestação de Interesse da Iniciativa Privada), a depender da origem do ato que suscitou o procedimento. O principal ponto a ser levantado é que praticamente todo PMI sob o Decreto, independentemente da origem, dará azo a um chamamento público, que por sua vez ensejará uma instância de processamento necessária ao procedimento.

O artigo 1º do Decreto menciona que o procedimento poderá ser adotado no encaminhamento de estudos (a) pela iniciativa privada ou (b) pela Administração Direta ou Indireta, de forma (i) espontânea ou (ii) provocada. A redação do artigo ficou um tanto quanto confusa, visto não terem restado claras as possíveis combinações entre elas. Mediante uma interpretação sistêmica dos dispositivos do próprio Decreto, juntamente com a redação do artigo em questão (uma interpretação meramente gramatical), entendemos que seriam possíveis, sem pairar dúvidas, as combinações “a+i”, “a+ii” e “b+ii” .

Isso porque, ao mencionar “pessoa física ou jurídica de direito privado”, a expressão subsequente é “espontaneamente ou mediante provocação”, enquanto que, ao mencionar “órgão ou entidade da Administração Pública estadual”, a expressão que se segue é “com a finalidade de subsidiar esta última na estruturação de parcerias”.

Quanto à possibilidade da combinação “b+i”, isso dependeria da extensão dada à expressão subsidiar. Poder-se-ia presumir que “subsidiar” a Administração Pública somente ocorreria quando já houver certo nível de maturação do projeto dentro da Administração Pública Direta, a qual teria que provocar a própria Administração para apresentar propostas à ideia desenvolvida (uma espécie de “autoprovocação”). Afinal, o conceito do verbo, pelo Dicionário Houaiss, é “subvencionar, financiar, contribuir com subsídio para, auxiliar, ajudar”, ou seja, contribuir com algo que já existe – ou ao menos cuja ideia já esteja preliminarmente esboçada.

Outra questão que se coloca é: e se as empresas estatais, que são pessoas jurídicas de direito privado, fossem enquadradas na hipótese (a), (b), ou (a) e (b)? Se entendermos como “ambas”, nesse caso, seria possível uma combinação b+i. Isso poderá trazer algumas consequências, que serão vistas no item (2) subsequente.

A inovação de se prever que órgão ou entidade da Administração Pública estadual possa apresentar PMI tende, portanto, a trazer certa confusão no uso do instituto dentro da própria Administração, por ser, essencialmente, uma ferramenta de diálogo entre iniciativa privada e Poder Público, e não um instrumento de organização interna da Administração Pública. Afinal, seria um procedimento “autoespontâneo” ou de “autoprovocação”, muito mais relacionado com a organização interna da Administração Pública do que com a recepção e análise de projetos por parte da iniciativa privada.

Entendemos que essa confusão deu-se em virtude da necessidade de concentrar os estudos na Plataforma Digital, seja qual for a sua origem – a qual, sublinhe-se, poderia estar regulada em decreto apartado e somente mencionada no Decreto de PMI em comento. E ela faz muito mais sentido no caso da Administração Indireta. Sob a luz da teoria do órgão na Administração Pública, parece não fazer muito sentido jurídico tal previsão para a Administração Direta.

Fato é que a possibilidade aventada seguramente tem alguma razão de existir por questões internas da Administração Pública estadual – porém, desconhecida por parte do mercado. Isso poderia suscitar dúvidas nesses procedimentos autoprovocados ou autoespontâneos, como no caso da (im)possibilidade de haver competição de projetos entre a iniciativa privada e algumas das estatais vinculadas ao Governo do Estado de São Paulo.

A ideia de canalizar todos os estudos por meio da Plataforma Digital, seja do mercado ou da própria Administração, mostra-se interessante em termos de processo administrativo; entretanto, repise-se, melhor seria se houvesse um instrumento normativo apartado do Decreto regulamentador de PMI a fim de regular essa apresentação de estudos por parte da própria Administração Pública. Afinal, pela leitura dos dispositivos do

Decreto, percebe-se que o seu teor é cogitado, quase que exclusivamente, para disciplinar a participação da iniciativa privada nesse processo. Enfim, os motivos internos da Administração Pública são desconhecidos – e talvez haja alguma forte razão para subsistir esse tipo de modelo, a qual nos carece de elementos para uma análise mais aprofundada.

Finalmente, outra distinção que não ficou clara no Decreto é que, no PMI espontâneo, haverá a etapa de Enquadramento e Análise Preliminar, anterior ao Chamamento Público; neste sentido, imagina-se que, no caso do PMI provocado, a Abertura do Chamamento Público seja o procedimento inaugural no diálogo entre Estado e iniciativa privada.

2) Seleção de proponentes (exclusividade) ou seleção de projetos (“swiss challenge”)

O termo Autorização é definido no Decreto como ato administrativo discricionário outorgado, com ou sem exclusividade, a fim de que o destinatário possa elaborar estudos para subsidiar a Administração Pública na elaboração de parcerias. O intento torna-se relevante, sobretudo em relação à noção de Chamamento Público acima referida, em que desejável se faz propiciar segurança jurídica aos proponentes quanto à intenção de exclusividade ou não por parte da Administração Pública.

Há vezes em que se justifica a autorização exclusiva, dada a complexidade dos estudos a serem elaborados. Tal regra, no entanto, deve estar logicamente “às claras” desde o início aos participantes. Isto porque, não raro, alguns editais de chamamentos de entes da federação silenciam quanto à autorização se dar com ou sem exclusividade – apenas para fins exemplificativos, o Decreto Federal nº 8.4285/2015 a prevê sem exclusividade (art. 6º, inciso I), o que ficava dentro da discricionariedade do Poder Público na análise das propostas.

A definição ex ante se faz necessária para que o particular possa avaliar o risco de se elaborar uma análise preliminar – possivelmente acarretando custos com contratação de profissionais especializados na área jurídica, técnica e econômica – e ter a sua autorização negada mediante uma seleção prévia de proponentes. Com as regras às claras desde o início, essa avaliação de risco pode ser feita de forma mais acurada pelo mercado.

Em suma, pelo Decreto estadual, fica dentro da discricionariedade da Administração Pública realizar uma seleção de proponentes (no caso da Autorização com exclusividade) ou uma seleção de projetos (que ocorreria nas autorizações sem exclusividade, possibilitando uma competição de projetos – swiss challenge).

O Decreto não menciona se a exclusividade incide somente nos casos de “PMI provocado”, “PMI espontâneo”, ou ambos. Na verdade, depreende-se que poderá ocorrer, sim, em ambos os casos. Nas hipóteses de PMI provocado, não haveria maiores discussões, porquanto se imagina que os esboços as ideias preliminares estejam já amadurecidas, em algum grau, dentro da Administração Pública, fazendo com que referida exclusividade possa direcionar, de forma mais objetiva, o interesse do Poder Público na realização de um estudo mais focado/direcionado/adequado ao interesse da Administração. Contudo, é viável que se tenha um especial cuidado nos casos dos PMIs espontâneos, eis que o caráter de exclusividade da Autorização poderá cercear a oportunidade de participação de demais interessados que sejam igualmente ou mais qualificados, em desprestígio a alguns princípios da Administração Pública, como a igualdade e eficiência. Ademais, a ideia inicial de “competição por projetos” (o conceito puro de swiss challenge) pode acabar sendo tergiversada para uma “competição por atestados”, conforme será analisado mais adiante.

Em síntese, a ausência de critérios no uso desse sistema de autorização com exclusividade pode bem reduzir a oferta de boas ideias para a Administração Pública, assim contrariando a finalidade do Decreto, que é estimular a participação da iniciativa privada no processo.

Entendemos, dessa feita, que a exclusividade teria que estar plenamente motivada no bojo do processo, de acordo com a complexidade do projeto, a fim de justificar a seleção de proponentes previamente à seleção de projetos. Ou seja, a não exclusividade seria a regra, enquanto que a exclusividade seria a exceção.

Até porque, também, o caráter de exclusividade tem como consequência obstar a participação da empresa na eventual licitação que pode ser originada dos estudos (art. 17, § 4º), o que nos leva a crer que, de acordo com o mercado de PMIs no Brasil, somente as empresas de consultoria devam se interessar por tal modalidade.

Contudo, como diferenciar, por exemplo, o processo de PMI provocado com autorização por exclusividade de uma licitação (via 8.666/1993) para contratação de consultorias para a elaboração de projeto básico e executivo?

No caso de um PMI a ser conduzido dentro da própria Administração Pública (situação b+ii), supõe-se que a autorização só poderia ser dada em caráter de exclusividade, visto que os subsídios seriam demandados pela própria Administração Pública em prol dela mesmo – nessa hipótese, aliás, o próprio chamamento seria dispensável. Já numa situação b+i iniciado por uma entidade da Administração Indireta de direito privado (uma estatal, por exemplo), entendemos que poderia ser possível conferir autorização sem caráter de exclusividade – sobretudo em áreas como saneamento básico, por exemplo, na linha do que foi discutido no item (1) anterior.

3) O “silêncio letal” da Administração Pública

Também passível de crítica é a presumida rejeição da proposta por conta do silêncio da Administração, eis que, conforme estabelecido no artigo 5º, VI, do Decreto, ultrapassado o prazo de 60 dias do seu recebimento, sem a emissão de nota técnica ou justificativa fundamentada do Secretário Executivo para a extensão de tal prazo, a proposta será considerada rejeitada, para todos os fins, com o seu posterior arquivamento.

Essa é uma das consequências trazidas pelo silêncio administrativo durante o procedimento. De outra sorte, em outros casos, como no artigo 16 e 21 do Decreto, não há previsão específica de consequência quanto ao silêncio da Administração.

A solução somente vem nas disposições finais: a regra geral quanto à inércia da Administração é que, transcursos quaisquer prazos sem a adoção de providência por parte de órgãos e entidades da Administração Pública, será caracterizada falta de interesse do Poder Público no projeto apresentado, o qual será extinto de ofício pela Administração (art. 33, II).

Além de se tratar de uma atecnia legislativa – normas gerais e especiais dentro do mesmo Decreto, acarretando uma antinomia aparente de normas –, isso tende a causar insegurança jurídica aos proponentes privados à medida que, hipoteticamente, não seria desarrazoado vislumbrar qualquer situação em que, por razões políticas, determinada proposta viesse ser colocada na “geladeira”, sendo posteriormente arquivada sem a necessária justificativa fundamentada – consequência automática do mero silêncio administrativo, consoante já afirmado.

Para a racionalidade do sistema jurídico sob uma perspectiva administrativista, parece natural que todo procedimento administrativo tenha começo, meio e fim motivados. Para o particular, consequentemente, essa rejeição automática pelo silêncio administrativo não constitui a melhor solução; ao revés, mais interessante seria até que continuassem os famigerados “prazos impróprios”, célebres dentro da Administração Pública brasileira e popularmente conhecidos como “engavetamentos”, principalmente porque a não extinção do procedimento sempre permitiria ao particular, quando do seu interesse, iniciar uma provocação formal para que houvesse a tomada de decisão por parte da Administração Pública – e, no limite, medidas judiciais, como um mandado de segurança, poderiam ser propostas. Mesmo assim, os prazos impróprios estão longe de ser a prática ideal dentro da Administração, embora preferíveis em relação à consequência que ora se imprime ao silêncio administrativo.

O silêncio, pois, apesar de nunca consubstanciar a mais recomendável das práticas na Administração Pública em face do seu clássico dever de motivação de todas as suas decisões, foi bastante explorado nos mais diversos dispositivos do Decreto, como ficou demonstrado.

Talvez, a fim de se evitar questionamentos judiciais quanto à motivação do ato administrativo de extinção do procedimento (teoria dos motivos determinantes, por exemplo) por parte dos particulares, adotou-se a consequência negativa que ora se comenta. Destarte, o silêncio da Administração passou a sacramentar qualquer discussão ulterior, sobretudo por afastar do particular as informações necessárias para questionar judicialmente (obedecendo a premissas mínimas de contraditório e ampla defesa) a decisão administrativa.

Esse ponto, por conseguinte, termina por exibir uma série de inseguranças jurídicas e potenciais ilegalidades que poderão ser contestadas judicialmente no caso de algum particular se sentir prejudicado com a extinção do procedimento. Diante do exposto, a recomendação é que a Administração Pública não se valha dessa faculdade em hipótese alguma, e que justifique sempre as extinções levadas a cabo, respeitando, na integralidade, os prazos definidos no Decreto.

4) O problema do uso dos estudos face à Lei de Licitações e o RDC

Uma vez “(...) [a]provada a proposta, será formado Comitê de Análise Preliminar pelo CGPPP ou pelo CDPED, com a finalidade de aprofundar sua análise (...)” (art. 7º) quanto a uma série de aspectos, dentre eles, a “possibilidade, ou não, de o empreendimento ser executado por meio de outras modalidades contratuais que não a apontada na proposta, bem como o respectivo prazo” (art. 7º, inciso III). Esse é o conhecido “fantasma da 8.666” nos PMIs que será explicado a seguir.

Um dos principais temores das empresas que apresentam projetos ao Poder Público, sobretudo as que não são empresas de consultoria, mas de intervenção direta no mercado de infraestrutura e serviços públicos, é a incidência do art. 9º, I, da Lei de Licitações, o qual proíbe a participação do autor do projeto básico ou executivo na licitação originada de tais estudos.

Explica-se: muitas empresas apresentam estudos e projetos não visando primordialmente à remuneração oriunda desse trabalho intelectual, mas sim à exploração econômica do empreendimento, a qual somente será possível após o procedimento licitatório ser realizado pelo poder público, do qual ela seguramente tem interesse em participar. O Decreto definiu o termo Parceria em sentido amplo (art. 2º, inciso IV), ou seja, como concessões comuns, patrocinadas e administrativas (as PPPs da Lei nº 11.079/2004), as quais estariam sujeitas à apresentação de estudos, e que redundariam na respectiva modelagem jurídica definida no PMI.

No entanto, sempre pairou a seguinte insegurança jurídica nas empresas: no caso de o particular apresentar um projeto de estudo para exploração mediante concessão e PPP, esse trabalho inicial sempre estará suscetível a, em nome do interesse público, ser utilizado para subsidiar uma licitação comum, regida pela Lei nº 8.666/1993, ou até mesmo pelo Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/2011), as quais podem obstar a participação do autor do projeto nessa futura licitação – o RDC possui regras mais atenuadas de proibição no art. 36, III, mas a ideia é a mesma da Lei de Licitações.

Tal regra existe para evitar o direcionamento dos estudos em favor do autor na futura licitação que será originada pela 8.666/1993 ou pelo RDC – embora seja, a contrario sensu, permitida pelas Leis de Concessão e PPPs.

Isso porque a autorização a ser concedida exige a cessão dos direitos (inclusive autorais) por parte do particular à Administração (art. 15, V), o que faz com que ela, em nome do interesse público, possa utilizar o respectivo material da forma mais eficiente possível (leia-se: conveniente e oportuno). Tal situação é particularmente preocupante nos casos de estudos técnicos, que podem ser amplamente reaproveitados em uma licitação comum, pela 8.666 ou RDC (já as modelagens econômico-financeira e jurídica propostas pelos particulares ficarão severamente prejudicada nessa situação de mudança da forma de contratação).

Embora não haja previsão expressa de reembolso para o uso em condições diversas das propostas pelo particular, a regra geral dos arts. 28 e 29 do Decreto nos permite a inferir que haverá o direito de reembolso ao particular, a fim de evitar o enriquecimento ilícito da Administração, um temor constante nos PMIs em diversos entes federativos.

Ou seja, ao menos quanto ao reembolso de despesas, o particular não terá a insegurança jurídica (princípio da confiança legítima) oriunda da utilização do material para fins diversos da proposta feita inicialmente, respeitando-se a boa-fé na Administração Pública.

A vedação à participação na futura licitação, entretanto, remanescerá à luz dos dispositivos citados da Lei de Licitações e RDC. Melhor seria que a cessão de direitos ficasse restrita à utilização dos estudos apenas nas hipóteses em que a sua participação no certame fosse possível – a saber, concessões comuns e PPPs. Todavia, é oportuno salientar que o princípio da supremacia do interesse público poderia afastar a aplicação de uma norma infralegal nesse sentido, razão pela qual a insegurança jurídica em todos os procedimentos continuará até que se porventura derrube essa restrição na Lei de Licitações e no RDC – o que, salvo melhor juízo, não está, atualmente, muito claro nas principais discussões de reforma da Lei de Licitações no Congresso Nacional, tal como, e. g., a da Comissão Especial Temporária de Modernização da Lei de Licitações e Contratos – CTLICON .

Por derradeiro, apenas um parêntese envolvendo o tema do reembolso das despesas: o Decreto não vincula a assinatura do futuro contrato de concessão ou PPP ao pagamento, por parte licitante vencedor, do reembolso do estudo ao particular que os elaborou. Isso poderia, no limite, acarretar discussões judiciais no caso de atraso ou inadimplemento desse pagamento entre o futuro concessionário e o elaborador dos estudos – uma relação jurídica que desampararia o particular elaborador dos estudos, máxime em uma discussão judicial na qual poderia ser alegada, por parte do Estado, ilegitimidade passiva ad causam. Uma das formas de se mitigar esse problema é condicionando a assinatura do contrato administrativo de concessão ao prévio pagamento do reembolso a quem elaborou os estudos, o que pode ser feito por meio de uma cláusula contratual – como vem sendo feito pela praxe até então.

5) Experiência ou expertise: qual seria a melhor opção?

Questão controvertida exsurge na exigência de “demonstração de experiência na realização de estudos similares aos solicitados” (art. 15, II), que deverá conter nos requerimentos de autorização disciplinados pelo Decreto. Em tese, acredita-se que o termo experiência, nesse contexto, designa exigência demasiadamente específica e documental (os já conhecidos “atestados”), razão pela qual poderia ser substituída pela expressão em inglês “expertise” ou outra equivalente, já que o proponente pode comprovar experiência real apenas em estudos diferentes dos propostos (por exemplo, consabida experiência no setor de transportes, mas apresentando, naquele caso, proposta para o setor de saneamento). Isso é relevante, sobretudo, para empresas que desejam ampliar seus ramos de atividades junto ao setor público.

É evidente que impedir a participação desse proponente hipotético por falta ou falha na comprovação de experiência significa um obstáculo à ampla colheita de sugestões no Procedimento, esbarrando no intento do próprio Decreto. Por outro lado, para conferir certa dinamicidade aos procedimentos, alguma comprovação seria necessária a fim de evitar propostas inoportunas. O termo expertise, nessa linha, confere maior liberdade na comprovação de conhecimento (diplomas, documentos, noticias, publicações, etc.), parecendo-nos mais adequado para os fins a que se destina o PMI.

A distinção entre experiência e expertise pode ser representada no exemplo a seguir: entenda-se hipoteticamente que uma empresa que já explora uma concessão de rodovias (mas nunca apresentou estudos para tanto) deseje participar de um PMI em saneamento, pleiteando autorização para apresentação dos respectivos estudos. Tal contexto é comum na diversificação da estratégica de negócios de empresas de infraestrutura. Nesse caso, ela certamente detém a expertise em concessões, embora não tenha a experiência no setor de saneamento. Não poderia ela, de alguma forma, contribuir dentro do procedimento (como, por exemplo, em questões regulatórias)?

Outro caso hipotético: uma empresa de consultoria e que possui experiência na apresentação de apenas um único estudo de PMI para concessão em saneamento – certamente ela terá menos expertise que a empresa anterior em matéria de concessões, embora detenha a experiência exigida no setor, ainda que superficialmente. E, principalmente, essa empresa terá meios de comprovar sua pouca experiência mediante apresentação de atestados.

Qual empresa, nesses dois casos, estaria mais preparada para satisfazer o interesse público? A que claramente detém expertise em concessões, embora não no setor de saneamento, ou a que apenas apresentou um ou poucos estudos em saneamento, apesar de não possuir tradição na elaboração de estudos para concessões em geral? Pode-se agravar essa situação no caso de a autorização a ser conferida em caráter de exclusividade: qual seria a empresa mais apta a conduzir os estudos? Qual o critério a ser utilizado para selecionar o proponente mais preparado para, in casu, ajudar a Administração a satisfazer a demanda da coletividade?

E, finalmente: a empresa que for desclassificada poderia recorrer administrativa ou judicialmente dessa decisão? No que se refere às disposições do Decreto, por exemplo, não há nenhuma fase de recursos das decisões administrativas tomadas dentro do procedimento. Caberia então ao particular prejudicado suspender, judicialmente, o procedimento?

Outra questão correlata a esse problema: a falta de experiência, em tese, poderia ser suprida posteriormente com a contratação de consultores por parte da empresa a ser autorizada (art. 17, §3º). Isso porque o dispositivo normativo em referência dispõe que o destinatário da autorização poderá contratar pessoas físicas e jurídicas “para a elaboração dos estudos”, e não para “auxiliar na elaboração dos estudos” – o que, aliás, na nossa opinião, seria mais razoável. Portanto, não é descabida a interpretação de que a experiência é prescindível nessa fase de autorização, visto que, posteriormente, o particular autorizado poderá se valer da expertise dos mais diversos consultores para a realização dos estudos.

Ademais, como a associação de consultores pode se dar tanto como uma consultoria “externa” (hipótese em que a responsabilidades pelo estudo será exclusiva da autorizada, e não dos consultores contratados) como dentro do empreendimento (uma espécie de joint venture entre consultores e a empresa que opera no setor), certo é que a exigência de experiência prévia poderá acarretar um tipo de “associação por atestados”, ou seja, empresas grandes tentarão se associar com outras que sejam especializadas em apresentar estudos – é o que já costuma ocorrer em alguns PMIs em diversos entes da federação – a fim de suprir a impossibilidade de comprovação de experiência no setor.

E aí vem mais uma indagação: a experiência deve ser comprovada globalmente pela “associação” ou individualmente por cada associado? Nesse ponto, há, novamente, uma indefinição no Decreto, dando margem a interpretações no seguinte sentido: uma empresa, digamos, do ramo alimentício pode vir a se associar com uma consultoria em projetos de transporte de passageiros por trilhos, objeto do PMI hipotético. Como agravante, a empresa do ramo alimentício pode se definir como a responsável pela apresentação dos estudos, enquanto que a empresa de consultoria, no ressarcimento, poderia ficar com a maior proporção (art. 15, § 3º, itens 1 e 2). Aliás, são famosos os casos em que consultorias registram valores irrisórios para o respectivo reembolso em comparação com o custo total dos estudos, já que poderão ser, futuramente, diretamente remuneradas pela empresa se ela se sagrar vencedora no futuro certame licitatório.

Desnecessária, pois, a denúncia do desvio de finalidade presente em arranjos associativos desse tipo. Por isso, entendemos que essa questão da experiência deva vir bem regulamentada nos editais de chamamento público a fim de evitar esses e outros potenciais questionamentos por parte dos interessados.

6) Especialistas sem “aparente” interesse direto ou indireto com os estudos

Voltando ao âmbito do referido Comitê de Análise Preliminar, dispõe o Decreto que, a seu critério, “poderão ser convidados, pelo Secretário Executivo, a participar, sem remuneração, especialistas detentores de notórios conhecimentos técnicos nas áreas envolvidas na proposta sob análise, que possuam reputação ilibada e que declarem, sob as penas da lei, não possuírem interesse direto ou indireto com a proposta, nem com a pessoa física ou jurídica de direito privado proponente” (art. 8º, § 1º). Esse dispositivo é um tanto quanto utópico, mesmo com as ressalvas das penas da lei a quem o violar.

Pergunta-se: estaria esse especialista impedido de participar posteriormente do desenvolvimento de estudos no procedimento, ou até mesmo no futuro certame que se originará? Se sim (resposta mais plausível), que interesse os especialistas poderiam nutrir pela participação, nessa fase de análise preliminar, e em caráter meramente contributivo, sem auferir qualquer tipo de remuneração efetiva (por meio do reembolso das despesas pelo licitante vencedor) ou potencial (por parte das empresas do setor em questão em uma eventual contratação)?

Vislumbra-se aí, quiçá, uma das disposições mais problemáticas do Decreto – embora seja, ressalte-se, muito bem intencionada. Parece bastante claro que um eventual descumprimento desse impedimento vier a se tornar público, ou cair ao conhecimento da Administração, algumas medidas administrativas e judiciais poderão ser tomadas – por exemplo, a desclassificação da licitante no certame ou impedimento de apresentar novos estudos no futuro em outras licitações – muito embora, reforce-se, o Decreto não preveja nenhuma consequência direta nesse sentido. Isso, convém ressaltar, não impede a tipificação, na esfera penal, de alguma das condutas descritas nos arts. 89 e seguintes da Lei de Licitações (Crimes nas Licitações) – sobretudo o crime de advocacia administrativa.

Com efeito, não é de se duvidar que tal situação poderá fomentar a ocorrência de contratações sigilosas entre os especialistas supostamente impedidos para assessorar empresas no desenvolvimento dos estudos e no futuro certame licitatório que será originado dos estudos.

Aliás, a praxe de mercado é que as contratações de consultores prevejam um termo de confidencialidade entre as partes (o famoso non disclosure agreement – NDA), o que dificultará sobremaneira a identificação da violação desse dispositivo do Decreto por parte das autoridades, pois tal medida representaria a própria violação dos termos do NDA firmado entre as partes. Seria necessário, portanto, uma requisição judicial de um eventual contrato em caso de suspeita por parte da Administração. Mas a própria suspeita seria difícil, ainda mais em casos nos quais o consultor em questão já seja contratado, em outros negócios, das empresas com interesse potencial nos estudos e na licitação em questão.

Além do mais, o consultor que violasse essa regra estaria prejudicando a competitividade do certame, promovendo uma clara posição de vantagem à empresa que o contratar em caráter de sigilo (ou o já tiver sob contrato por outros negócios) por conta do acesso privilegiado a informações oriundas das discussões travadas nessa avaliação preliminar do PMI.

A única hipótese em que tal convite talvez possa ser viável (isto é, sem que haja o risco de “venda” de influência por parte de consultores mal intencionados) , em nossa opinião, é quando o interesse pelo profissional em contribuir seja exclusivamente acadêmico – como professores em regime de dedicação integral ou exclusiva, que podem estar impedidos de exercer outro ofício que não o magistério por parte de seu respectivo estatuto. Ou, então, servidores públicos de outras esferas federativas, com experiência no setor objeto do PMI em referência, que igualmente estejam proibidos de comercializar o seu serviço no mercado.

Qualquer consulta feita a outros profissionais, sobretudo os que atuam no mercado de infraestrutura e setores regulados, em tese, dará ensejo a essa desconfiança, acabando por levantar suspeitas quanto à lisura do futuro certame a ser travado.

Últimas considerações

Ao cabo de todas as considerações acima delineadas, insta reiterar a percepção geral que nos motivou a elaborar o presente ensaio, qual seja, a de que o Decreto nº 61.371/2015, de fato, representa um dos atos normativos mais modernos e completos, juntamente com o Decreto federal já comentado, no que concerne à regulação normativa da participação privada no processo de contribuição para com o desenvolvimento de estudos em projetos de infraestrutura e serviços públicos.

Outrossim, repise-se também que, a despeito de tantos questionamentos suscitados, temos, em nosso sentir, que o Decreto certamente consubstanciará bom parâmetro ou ponto de partida para que outros Estados e Municípios também possam, pouco a pouco, elaborar os seus respectivos Decretos na regulamentação do PMI.

E, finalmente, é sabido que muitas das discussões aventadas nesse trabalho poderão ser dirimidas por atos normativos complementares durante os próprios PMIs (como nos Editais de Chamamento), ou mesmo no certame a ser realizado com o resultado dos estudos. Tudo isso para que o procedimento traga o maior nível de segurança jurídica – e, por conseguinte, de eficiência – tanto para a Administração quanto para os demais interessados, evitando-se, dessa forma, as inúmeras contestações administrativas e judiciais que costumam atrasar os grandes projetos de infraestrutura e serviços públicos no Brasil.

Nota dos autores: Este texto, finalizado em 26 de julho de 2015, constitui a segunda versão (versão melhorada) do artigo que recentemente circulamos na internet via slideshare. Nesta ocasião, gostaríamos de reiterar nossos agradecimentos aos pertinentes comentários de Paulo Victor Barchi Losinskas.

(Este artigo reflete as opiniões dos autores, e não do PPP Brasil. O portal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações).

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